Sempre que penso em sentar para escrever uma história ela já existiu numa conversa com a solidão de minha cabeça. Hoje pensei em Deus, na minha ojeriza e temor. Nessa relação confusa com a religião que foi cosida desde menina. Quando era criança aprendi na catequese que cada ser humano tinha um caderno onde eram anotados seus pecados. E que no dia do juízo final o próprio Deus o leria e daria seu veredicto aos merecedores do céu ou do inferno. Isso me aterrorizava de tal forma que qualquer coisa que dissessem que estava fazendo de errado imaginava que meu anjo da guarda pontuava silenciosamente em meu manuscrito. E foi por essa crença que me sufoquei e omiti por mais de uma década um abuso sexual que sofri de um primo que vinha passar as férias em minha casa. Sentia pavor só de olhar para ele. Tinha oito anos e ele o dobro da minha idade. Todas as vezes que protestava ele me dizia que era eu que tinha pedido, “Você quis, se disser a alguém vou contar que foi você que me obrigou. Ninguém vai acreditar em você.”. Esse inferno durou um par de férias de julho, até ele se formar e não ter mais a desculpa de retornar à nossa casa. Minhas crises de pânico e depressão começaram nessa idade e foi nessa época que meu avô paterno veio a falecer. A família atrelou meu comportamento ao choque da perda, mas estava tão anestesiada que vim sofrer pela morte de vovô quase meio ano depois.
Sobre Deus, acredito que nunca o amei, só temi o que havia permitido escrever sobre mim. Às vezes acho que a culpa que carreguei por todos esses anos me impede de crer em alguém que verdadeiramente me perdoe. Há muitos dias que não me perdoo. Há períodos em que gostaria de queimar todos os cadernos e histórias desse mundo. Mas lembro que foi a escrita que me salvou todos os dias em que Deus e a vida pareciam não escutar nenhum de meus clamores. Talvez em algum momento me permita ser ouvida por alguém que consiga me enxergar. Não é algo que almejo, mas que sinceramente me faria feliz.
Toda história contada um dia nasceu do sonho de uma criança, sua nascente é a mesma do primeiro sangue das veias de uma vida. Ela jorra de uma mulher e de todas as mulheres que uma mulher é capaz de ser. No sussurro que paira no silêncio de um quarto escuro seus ramos se enroscam, entortam, adornando cabeças como as coroas fazem com os reis. São contadas antes de dormir para sombras, amigos imaginários, para Deus.
Certa vez numa cama uma menina acordou de madrugada e enxergou ao seu lado uma criatura que a fitava de olhos abertos. Não gritou ou teve medo. O seu silêncio a envolveu como uma manta invisível, uma bolsa amniótica que viria estourar quase duas décadas depois. Naquele instante acreditou que o que via era seu anjo de guarda que velava por seu sono. E sua imagem a fez adormecer na crença gerada pela mãe, de que para toda alma há outra que estaria ao seu lado até o fim de seus dias, protegendo-a de todo o mal. Dormiu, acordou, esqueceu e nunca mais voltou a ver a face arredondada que não era de homem e nem de mulher, nem seus dois olhos amendoados e sem expressão, seu nariz pequeno e sua boca de lábios finos e um pouco tristes. Esse recorte me vem apenas na hora-agora e é uma das inúmeras desculpas que as histórias usam depois de tantos anos para me fazer sentar e escrever as lembranças de uma vida que não parece minha, mas que circula em minhas veias, passeia entre aortas. E que escapa inúmeras vezes do coração como uma criança que finge não escutar os pais para não entrar em casa e brincar um pouco mais numa rua de barro.
Sandra.
Aos sábados as duas filhas de dona Margarida iam à missa. Às 8h se iniciava a catequese, às 11:30 erámos dispensadas. Íamos para casa almoçar e mais tarde, às 16h, partiríamos novamente a igreja para missa das crianças. Era a comentarista, lia bem, tinha a voz bonita. Meus pais achavam a coisa mais linda ver a filha mais velha lendo na celebração. Detestava a obrigação. Não só a leitura, mas de sacrificar todos os sábados em mais de três anos naquela função. Queria acordar tarde, ficar na preguiça deitada na cama até cansar, ver meus desenhos favoritos estatelada no chão da sala. Menos vestir uma bata e ir pro lado do altar cumprir com a vontade alheia. Mas aquilo não era negociável, era ir e pronto e porque sim. Às 17:00 voltávamos pra casa, mas a graça do sábado não era a mesma, começava a escurecer e as portas se fechariam com a oportunidade de brincar na rua com minha irmã. No domingo à noite a família toda se arrumava com as melhores roupas e íamos a missa das 18h. Mais uma vez lá se vai o tempo, as oportunidades secretas de aventuras que a minha cabeça de menina fantasiava em poder viver.
Nessas idas e voltas pra casa vez ou outra avistava Sandra. Era uma mulher alta e magra, tinha o porte de uma modelo de passarela. Sempre agitada e falante, estava sempre indo para algum lugar chamando a atenção de quem passasse por seu caminho. Não usava maquiagem, nem penteava os cabelos, Sandra não tinha sequer uma sandália nos pés. Falava consigo mesma, com as paredes dos comércios fechados, com as sombras das pessoas nas calçadas. O povo dizia que era maluca. Achava a coisa mais triste e desesperadora quando avistava na mesma calçada ou do outro lado da rua. Pensava em como havia parado ali, no nada, com os pés feridos e o semblante desfigurado por algo que só ela parecia enxergar. Onde dormia? Ela não tinha medo de que lhe fizessem alguma coisa durante à noite? O que comia? Diziam que a família tentou internar algumas vezes, mas que sempre fugia e voltava pras ruas, tinham desistido de dar jeito e simplesmente se conformado com o fato de que não havia solução a não ser deixá-la viver a realidade que tinha escolhido. Encontrá-la era me desmascarar, lembrar do que temia e escondia por trás dos livros, das histórias, e que só se revelava perto da hora de dormir, nos sonhos ou durante o dia quando tentava conter a vontade de fazer xixi até se tornar insuportável e acabar me urinando onde estivesse. Sempre tive medo de ser tomada pela loucura.
Tive mais psicólogos e psiquiatras que amigos. Ainda lembro do cheiro do primeiro consultório que pisei, doce, um perfume que parecia com os das tias do colégio, uma mistura de falsa segurança que me deixava alerta e ao mesmo tempo sonolenta. Sentava numa pequena cadeira de madeira e a médica me entregava uma folha de ofício branca. Desenhe aqui como você se sentiu essa semana. Não sabia responder, nem tentava, essa resposta era um enigma aterrador que não conseguia decifrar e transformar em algo visível. Todas as quintas-feiras durante três anos desenhei a mesma imagem, uma pequena ilha com dois coqueiros no centro, um por de sol e algumas gaivotas de plano de fundo. Pintava com tinta guache com o pincel ou com o dedo. Em todas as consultas a única coisa que me vinha na mente era chegar à perfeição daquele cenário. Mas sempre acontecia de pingar tinta demais e enrugar o papel ou borrar alguma parte da paisagem. No fim, aquele desenho se tornava uma coisa repulsiva que empurrava para o canto da mesa com tom de quem já está farto de algo.
Ao final de meus anos de atendimento com a minha primeira psicóloga, quando nada parecia conseguir justificar o motivo pelo qual meus pais receberam meu o diagnóstico de depressão profunda, ela me entregou uma sacola com todos os desenhos feitos durante as consultas. Nunca consegui lhe dizer a verdade e esse era um dos meus fardos. A realidade era algo que havia aprendido sozinha a enterrar debaixo de uma faixa de areia, uma pista de uma corrida ao redor de dois coqueiros num fim do mundo. Um lugar que só eu sabia a existência, distante o suficiente para não conhecer mais o caminho de casa.
A fada madrinha está de férias
Sempre sonhei com algo milagroso, com o dia em que iria acordar e perceber que finalmente havia me tornado uma menina de verdade, agraciada pelo milagre mágico concedido por uma fada madrinha. Dentre as VHS de casa, essa história era uma das mais vistas por mim e minha irmã em nossa infância. Sentávamos no chão da sala pra assistir repetidamente, por um par de horas, tantos contos de fadas que perco as contas. No início do filme a fada dizia a Pinóquio que se ele fosse um bom menino poderia finalmente se tornar humano. Eu levantava uma, duas, três, quatro vezes. Ia na cozinha, no terraço, andava pelo corredor, voltava a sentar. Agora, Pinóquio era engolido por uma baleia e descobria que seu pai também estava dentro do estômago do animal, na busca de reencontrá-lo. Na história ele encontrava as pessoas erradas, sofria pela maior parte do tempo antes de ter o desejo concedido. Aquela peregrinação tinha como objetivo amadurecer, ensinar uma lição ao boneco e também ao seu pai. Era isso que pensava, era com esse sentimento que abraçava cada um dos meus sofrimentos. Uma hora ou outra finalmente aprenderia a grande lição, para isso deveria tentar ser uma boa menina, admitir todos os meus erros. A questão era que a minha culpa não se nomeava.
A pequena criatura sonhava incessantemente e apenas com o sentimento de aceitação, com a vida que cria ser normal e ideal. Compreendo agora com um pouco mais clareza o motivo pelo qual sentia tanta angústia ao tentar rever aquela fita. Fosse por me ver inconscientemente como o próprio boneco ou pela história me trazer um pouco do sentimento frustrante e cansado de que o sofrimento seria pré-requisito para validar a felicidade futura, quase inalcançável.
Esse é uma das falhas mais bobas das histórias infantis. Não permitir a redenção sem sofrimento, não cogitar a humanidade dos pequenos erros, não permitir ao coração o perdão próprio. Há equívocos que são necessários, há diálogos que não carecem o horror. Nenhuma criança deveria crescer temendo o que há escrito sobre si em folhas de papel.
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Um abraço.