Imagem: Isabella Luiz

A ilha das mulheres estilhaçadas

celina
4 min readOct 31, 2023

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você é como o Deus que sonhou o universo
e esqueceu como era o antes de todas as coisas

Quebrei mais um celular esse ano. A história da vez é que o despertador tocou e a ponta do dedo empurrou o aparelho para o abismo do chão do quarto. A tela rachou inteira. O plano de fundo de desbloqueio virou uma imagem fantasmagórica. O rosto de uma mulher em pedaços é algo aterrorizante de se ver.

Fazia um tempo que não sentava para digitar algo para internet. Parte de mim tem esse pensamento recorrente de que o chamado da escrita é como um comprimido de vitamina C. Efervescente, que deve ser tomado para prevenir algo, mas que acabo lembrando da existência quando já estou doente. O caderninho de cabeceira está quase finalizado. Nele tenho escrito alguns dos sonhos estranhos que tive nesse último ano. E é nele que escrevo também quando não consigo dormir e não tenho com quem conversar. Acho que todos deveriam ter um caderninho assim.

Vir aqui me dá um pouco dessa estranheza buliçosa, mas ao escrever posso me enxergar na superfície espelhada de um lago e me afogar um pouco antes de emergir, só para recordar que ainda ando viva. Tenho escrito sobre a infância, como sempre, sendo repetitiva e preservando todos os meus vícios de linguagem. Os gatos ainda não se acostumaram com a casa nova, gostam apenas do corredor e do banheiro, mas o resto lhes parece estrangeiro. Tenho fotografado tudo com a máquina e alimentado a nuvem do e-mail pela primeira vez em toda a minha existência como pessoa online. Excluí as redes sociais e estou acompanhando as notícias pelos canais de jornalismo. De uns tempos para cá a ignorância às vezes tem me poupado um pouco da tristeza matinal e vespertina. Estou aprendendo a apreciar envelhecer e me tornar invisível, mas as dores nas articulações me fazem detestar de corpo e alma a ideia em alguns dias. Penso menos em minha criança, em um filho, em romance, em companheirismos amorosos. A ideia simplesmente me abandonou, se tornou obsoleta no meio da agonia de me manter sã e salva neste planeta.

Entra e sai ano e os nomes mudam, mas as posições são as mesmas. Homens passam por mim, mas nenhum permanece, não sei desejar criar vínculos. Em uma conversa com uma amiga constatei que odiei todos aqueles que acredito que amei. E que talvez a minha permanência em algumas relações tenha se prolongado pela minha necessidade lasciva de me sentir como o ser mais miserável do mundo quando eles param de me enxergar somente como uma transa gostosa e um seio macio para se deitar. Começo a odiá-los quando finalmente eles descobrem que me amam, mas isso depois de destroçarem tudo de bom que havia em mim e eu permitir.
Não sei como ou quando foi que meu cérebro se programou para tornar a minha tolerância à frustração uma coisa tão surrada. Acredito piamente que sou a pior pessoa do mundo e que tudo que acontece comigo é uma espécie de expiação de meus pecados. Ao menos foi isso que minha cabeça de menina pressagiou e a minha mente de mulher aprendeu a concordar.

E apesar de todo fatalismo barato meu coração vez ou outra bate como se tivesse quinze anos a menos do que tenho hoje. Ele vibra tão forte e juro, por alguns breves momentos, pareço estar na hora-agora. Sinto vontade de chorar de felicidade, de entregar meu coração ao primeiro estranho na rua que me disser um “bom dia”, e reaver todos os sonhos fadados ao fracasso que tive em trinta anos de vida. Mas logo o vapor retorna a ornar a minha mente e a me expulsar do presente como quem varre uma poeira que se fez notar num canto de parede. O vento me leva aonde todas as partículas do mundo um dia irão parar, ao esquecimento.

vê, as coisas confusas se repetem como um relógio quase sempre pontual tic-tac-ando no silêncio do que é incômodo
hoje penso novamente que o amor passou cruel e ligeiro como motorista de ônibus da capital
olho para o pó escuro que fica incrustrado nas mãos e nas chinelas, tusso um pouco por me irritar a garganta, “talvez devesse ter gritado”, penso
mas todas as vezes que a condução surge nunca emito som algum

Oi, faz tempo. Vez ou outra eu lembro daqui e que gosto de escrever para além dos caderninhos de cabeceira. A escrita é a única coisa que permanece como se o tempo não passasse. Espero que tenha sido uma boa leitura. Um abraço.

Celina.

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Written by celina

Escritora, nordestina, roteirista e fotógrafa. Editora da Fale Com Elas no Medium. Stories in Portuguese and English.

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