Isabella Luiz

A mulher de vapor

Cartas para Edna

celina
4 min readSep 20, 2022

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O que é real, Edna? Sentar aqui na beirada da cama ao fim do dia, pisar o chão com o pé direito e uivar de dor é estar aqui? Faz duas semanas que o joelho direito incha e lateja. Não sei o motivo. Comecei a sentir incômodo ao subir os lances de escada do edifício caixão onde moro. Terceiro andar, cerâmicas antigas e um cheiro de passado, algo que me lembra a casa de meus avós em Campo Grande. Pensei que era cansaço do trajeto de ida e volta do trabalho, ignorei como faço com outras coisas que deveriam ser importantes, mas que a minha cabeça mensurou a prioridade da mesma forma cretina de sempre. Se não é insuportável na hora “agora” é suportável. Levei com a barriga até que na última quarta-feira, ao chegar em casa, sentei no sofá para descansar e depois de uns minutos não consegui levantar. Não conseguia dobrar o joelho, que nessa altura do campeonato parecia uma bola de handebol vermelha. Fui parar na emergência. Voltei depois de duas injeções nas nádegas que por alguns minutos fizeram a dor do joelho parecer brincadeira de criancinha. Antes que me perca, Edna, nem ali senti estar respirando algo. Nem abaixando as calças na frente de uma pessoa que nunca vi, nem quando o líquido da injeção entrou nas carnes e parecia que o diabo estava fazendo espetinho da minha bunda. Ainda me observava como narradora expectadora, uma luz de poste fraquinha que ilumina uma rua paralela à avenida.

Parei de sentir medo disso há muitos anos. Ainda criança, sentada no banco de trás do carro do meu pai, voltando de mais uma consulta com um psiquiatra. Foi ali que senti pela última vez o fraco de estar de corpo em alma na hora agora. Até o último segundo tentei segurar aquela sensação, fechei os olhos e juro, pude sentir a gravidade me fazer pertencer ao mundo. Mas não cheguei em casa naquele dia. Estava perdida numa cidade que comecei a sonhar e que hoje continuo sonhando. Não consigo me revoltar como antes, me desesperar e desejar o fim dos tempos. Só me conformei com essa existência de vapor, quase como se não estivesse ali se alguém não me notasse. Acho que esse é um dos motivos pelos quais adotei meus gatos, eles precisam me enxergar e por isso ainda não sumi aqui da beirada. Soa estranho, eu sei. Sinto sua falta, Edna. Gostaria de entender as pessoas como quem lê um livro em terceira pessoa, comentado, com observações pontuais sobre coisas que ninguém vê com o olhar.

a Agamenon entra pela janela
sento na mesa e assisto os carros passarem no escuro do quarto
parece um filme, quero registrar a cena para que dure a eternidade
como será a vista que faz Deus sentar para observar a humanidade?
será que sabe que existe? será que ele observa também do escuro?
antes pensar em um Deus em um céu me trazia um terror que atravessava os nervos e ossos

talvez Ele tenha cansado de assistir a criação e deixado o acaso manter a seleção no piloto automático
assim como faço com a minha vida

meu coração é seu, não importa quando. ele é sempre jovem e saltitante como a lembrança de assistir um menino tolo atravessar a rua em direção a outra. não há erro, ele virá como a passagem de um livro e eu serei a sua rosa dentro de uma cápsula de vidro. irei aguardar o seu retorno depois de uma longa viagem. ao envelhecer ela o observará com medo, pois não reconhecerá direito a face, apesar de parecer com a de alguém que amou. é que as rosas, mesmo as presas em uma redoma de vidro, também sofrem com o tempo, perdem suas pétalas e espinhos.

há em mim algo que não consegue mudar, não totalmente e isso é o meu coração. ele ainda te pertence como um livro numa estante na biblioteca, que viaja, mas retorna. me pergunto qual é sua leitura predileta e quantas vezes a toma. mesmo que se passassem mil anos saberia dizer como são suas mãos, elas se parecem com o meu coração e com a espera da rosa.

quis a vida me presentear com a contradição das palavras e rir de minhas convicções. me permito saltar no buraco de minhoca e reviver suas pernas, o medo de algo familiar e o desejo que me segure as mãos sem que sinta que desejo afastá-las. quero que atravessem o meu peito e arranquem aquilo que tentei apagar. sinto o sufocar de saudade do que vivi em verdade e em sonho. meu coração é seu, isso é certo. como dois e dois são apenas dois ou dez.

certa que apesar de ter crescido, sonhei com você deitando em minha cama para dormir, abraçando minha cintura. no escuro reconheci cada célula do seu corpo e todas me saudaram como quem chega finalmente em casa.

Olá, esse é um recorde nesses últimos anos. Vir aqui é lembrar que existo. Ler um pensamento deve ser parecido como orar. Talvez seja essa uma semelhança com a imagem de Deus. Tenho dividido a escrita com nomes dos projetos que comecei aqui. “Canções de casa e apartamento”, “Como entreter náufragos e naufrágios” e agora “A mulher de vapor”. Tudo muito confuso e oco, como um tiro no escuro. Recebi algumas mensagens pelo último texto e me senti feliz por poder me sentir quista ao partilhar algo aqui. Até breve.

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celina
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Written by celina

Escritora, nordestina, roteirista e fotógrafa. Editora da Fale Com Elas no Medium. Stories in Portuguese and English.

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