Azáfama e a criação do universo
Vinha esses dias matutando a ideia de me inscrever em um concurso literário que lançou no início de fevereiro. Faz uma semana que soube da abertura e, desde então, o link jaz marcado na barra de favoritos. Tenho um manuscrito mal organizado nos documentos, tempo ocioso o suficiente para dar uma polida e enviar antes de encerrar o prazo da entrega, mas não consigo sair do canto.
Se estivesse em terapia, certamente teria escutado mais uma vez sobre como a minha sabotagem me faz a criatura mais exaurida do mundo quando preciso diligenciar algo relacionado à minha felicidade. A ironia é que escrevo quase diariamente e, quando me disponho a fazer de forma despretensiosa, a fonte de energia motriz é inesgotável. Posso passar horas escrevendo se a sombra de uma expectativa não estiver presente em minha mente.
Escrevo sobretudo para o eu consciência, para o eu que assisto e que não sinto existir, para quem me lê anonimamente durante o tempo remunerado, para os que desejo que continuem me vendo da forma como gostariam que fosse, mas principalmente para os entediados. Vê, tenho o dom de entreter, principalmente quando estou triste. Isso não quer dizer que não o faça alegre. O que escrevo não necessariamente se passa no tempo presente, ou seja sobre mim, ou sobre essa existência. O que importa é o que habita na história, a vida que nasce quando palavras são despejadas em uma tela em branco e depois lidas.
O que me faz questionar como e o que Deus sentiu ao escrever o universo, se o fez sendo criança, adulto ou um velho. Ou se o escreveu como a santíssima trindade se explica. Talvez, assim como eu, o fez em prol dos entediados.
Ainda sobre o manuscrito que gostaria de enviar, tenho tudo arquitetadamente montado, perfeitamente construído no plano mental. O pensamento de transformar a ideia em objeto palpável tem me tornado o ser mais organizado e caprichoso para com os afazeres domésticos. O arquivo continua inacabado, mas a casa está um brinco.
Tá todo mundo um pouco, meio ou totalmente, ferrado das ideias. E as pessoas que parecem estar muito bem-obrigada? Essas sabem fingir mais e melhor ou estão sendo criadas pela mãe do Jimmy Bolha. No meu círculo social, quase todos estão ou têm algum problema para dormir. Tenho distúrbios do sono desde os oito anos, sou especialista em identificar com precisão um bom insone.
Nessas mais de duas décadas, me dediquei a todo ritual noturno que se possa imaginar. Dos clássicos “banho quente” e “um copo de leite” antes de deitar, aos perigosíssimos comprimidos de zolpidem e cia, que me renderam algumas ligações as quais não tenho ideia do teor, bem como uma série de vídeos encaminhados a um amigo na qual falo com dois quadros pendurados no corredor de casa sobre um assassinato em que fui testemunha ocular. Depois de mais fracassos e erros do que êxitos, posso dizer que hoje tenho algumas técnicas que só são falíveis devido a alguma exposição ao terror psicológico, e não falo sobre o dos filmes.
A estação espacial internacional faz lives diárias no YouTube e no seu site oficial. As câmeras mostram as dezenas de viagens que ela faz durante o período de um dia ao redor da terra. É possível ver o trajeto oficial, a posição geográfica exata na internet, eu tento racionalizar o mínimo para curtir brutamente a experiência. A transmissão tem som, então muto ou coloco o volume bem baixinho. Em alguns momentos, os astronautas se comunicam com a base terrestre e esse áudio é transmitido pela live.
Esses dias, foi possível até escutá-los falando sobre a chegada dos novos tripulantes que atracaram na ISS* no início desta semana, sobre os procedimentos que estavam realizando para a nave acoplar na estação. O ritual, batizado vulgarmente de Interestelar, se inicia com um banho gelado tranquilo lá pelas 23 horas, moro no Nordeste, então estou longe de uma hipotermia em qualquer mês do ano. Coloco um pijama cheiroso e confortável, me perfumo e, se estiver num dia muito bom, passo uns creminhos nas pernas. Ligo a TV, sintonizo no canal, apago as luzes e deito para assistir. A partir daí, não pego mais em celular, faço um exercício respiratório, relaxo os músculos, me ajeito numa posição confortável para caso eu durma mais rápido do que o previsto. Penso em todas as coisas que ainda me fazem feliz, agradeço por elas e, quando algum pensamento intrusivo me atravessa, relembro a mim mesma que um dia vou morrer e todas as aflições que conturbam o meu juízo não vão fazer mais sentido algum.
Imagino que daqui a trinta anos a ISS vai estar no fundo do mar no cemitério espacial e talvez eu esteja vendo alguma live de alguma colônia na lua ou em Marte. Relaxo com uma ideia e com outra, vou criando várias histórias, vários cenários impossíveis num RPG solo, sem consequências ruins, sem finais trágicos, apenas uma dose de absurdo indolor, o suficiente para me induzir ao sono.
Espero aos que, por acaso, acabarem chegando aqui e fizerem o teste do procedimento acima, que a transmissão seja útil para solucionar, amenizar uma noite de insônia. Se por acaso não funcionar, você pode apenas encaminhar o link da live para calar algum conhecido que ainda insista em algum argumento terraplanista.
*ISS — International Space Station
Rascunhos do caderno de cabeceira, Março de 2024.
O homem que me dava sermão parecia ser meu pai, entre uma frase e outra, olhava meu ventre com reprovação. Apesar de seu desgosto, eu amava a criança que crescia em mim. Estava radiante de felicidade, alegria e ansiedade de conhecer seu rostinho. Em algum momento do sonho, me vi só numa rua estreita de barro, comecei a sentir as contrações e caí no chão. Uma mulher que passava me socorreu e ajudou a fazer o parto ali mesmo. Não foi sofrido, nem demorado. Em pouco tempo pude ouvir minha criança chorar a plenos pulmões, a mulher o envolveu nos braços em uma manta branca. Ela me olhou horrorizada e disse que a criança não tinha coração, estava morta. Não acreditei e me lancei sobre ela. Tomei o meu bebê de seus braços. Sua pele era fria e acinzentada, seus olhos nunca chegaram a se abrir.
Aquela imagem me encheu de uma dor que fez latejar cada membro do meu corpo. Lágrimas grossas escorriam do meu rosto, banhando a criança que se dissolvia em minhas mãos, desaparecendo para sempre. Olhei para o lado e a mulher tinha desaparecido. Comecei a gritar, chamando pelo nome de vários conhecidos, mas ninguém respondeu. Não havia ninguém para testemunhar o que tinha acontecido. Precisava de uma prova da existência de meu filho, mas não existia nada além de um par de olhos inchados. Não é a primeira vez que sonho que perco um bebê ou que estou grávida. Acordo sentindo uma saudade sufocante de outra vida.
Sonho com esse pequeno bairro há anos. Passeio por entre várias casas, esbarrando em pessoas. Às vezes a pé, outras de bicicleta. Sempre que estou nesse lugar, dobro em uma esquina estranha e subo um pequeno morro antes de chegar à casa da Mulher. Nunca consegui recordar suas feições, sei que é grande, que seu riso é estridente e ecoa no corredor de grades brancas que dão para um jardim. Ela me convida a entrar, não faço cerimônia, já estive ali muitas vezes. Ao atravessar o portal que dá para fora, antes de pisar na areia do quintal, tudo se converge. Como uma fita de VHS que se estraga e pula alguma parte importante da filmagem, esqueço e deito em meu sonho. Acordo em minha cama com a sensação no corpo do vento, do medo de me perder naquela cidade, mesmo sabendo que, não importa o caminho que tome, sempre irei parar nos mesmos lugares.
um dia me mato num ato poético como personagem de livro de mistério
e depois engano a morte com a sorte e truques
voltando à vida com uma explicação absurda
um dia me invento feito lenda urbana
me cerco da minha mitologia
e viro fantasia na boca de quem me conta
um dia viro poesia cantada por bardos
acompanhada por arpas e lágrimas
por danças ao redor de fogueiras
que viram poeira ao raiar do dia
um dia ainda viro a página
e me descubro numa frase destacada em marca texto cor de rosa
um dia me viro e pouco me importa
um dia certa e torta
viro o que crio
Olá, tudo bem? Pensei em outros títulos para essa postagem, entre eles “Coisas que perco tempo quando deveria estar fazendo algo realmente importante”, “Era um texto para dar dicas sobre como dormir bem, porém perdi o sono enquanto escrevia”, mas achei que ia ficar bobo demais. Fiquei um pouco em dúvida em partilhar a minha dica de como furar a insônia, primeiro porque é algo realmente muito particular.
Segundo, enquanto escrevia, imaginei que um estranho indesejado conseguia entrar em meu quarto pela TV enquanto assistia à transmissão ao vivo, uma cena meio Samara em O chamado, e isso me perturbou um pouco. Estou num período do mês em que a minha criatividade se transformou em um instrumento de felicidade e tortura. Passa em sete dias. Até agora, não sei se realmente senti vontade de escrever ou se o ímpeto foi oriundo da minha necessidade de fuga quando preciso resolver a vida. É bom poder passar aqui.
Espero que tenha aproveitado a leitura. Um abraço.