Cartas para Edna

celina
2 min readJan 23, 2023

Não lembro a última vez em que não senti a premonição de uma catástrofe inevitável. A ruína de algo que nem havia construído me assombrava como o espírito que não sabe que não pertence mais ao mundo dos vivos. Ele vem em pensamentos, vapor, palpitar e uma sensação de morte que começa na boca do estômago, para os pés, coração. Sou massacrada por intrusos, peço a Deus misericórdia, esqueço, pois nunca tive uma prece atendida, assim penso. Parece que sempre existi e que vivo assim, não houve um dia de paz, em que não me sentisse culpada ou aflita por algo. Não tenho uma boa memória agora.

Edna, essa é a minha última carta. Já não tenho forças, nem ânimo sequer para levantar as mãos, se pisarem em algum de meus pés não sairia um único ruído. Já não há histórias que queira contar, há apenas esse sentimento de que o meu relógio permanece atrasado e os dias iguais aos de vinte anos atrás. Me pergunto se já nasci assim ou se só tive consciência quando pude me comparar aos demais. Não me sinto na hora-agora, nem nesse país, nesse planeta. Não sinto que tenho um desejo qualquer que não seja desintegrar, esquecer e ser esquecido. Tudo é estrangeiro ou seria eu? Sinto esse abandono, essa tristeza e não sei o que fazer. A casa nova me exauri as energias, os gatos estão estranhos e as madrugadas escuto um homem e uma mulher conversarem na suíte. A cama do quarto de hóspedes tem um colchão horrível, mas assim sinto paz. Não consigo chorar a não ser que alguém grite comigo ou me ameace bater, como foi semana passada. Quero que alguém pise na minha cabeça até me apagar, quero dormir por um mês.

— você pode sangrar sob os olhos dos que te dizem respeitar ou até mesmo amar, mas no fim estamos sós, carnes e ossos. Vendendo a alma que recebemos antes do útero ao que a vida pede, ao que os homens pedem. Somos algo a ser tomado, desvirtuados, cuspidos e comercializados. Por fim, não sabemos o que somos ou o que nos tornamos, ou pior, o que nos tornaram. O eco da voz dos deuses sussurram aos sete ventos verdades que não questionamos por medo do que iremos encontrar. Assim é feito o mundo, de covardes que tentam sobreviver dos farelos dos crânios dos fracos. Estamos fadados a nos destruir pelas mãos de fortes, os bons vivem a ilusão de um renascimento que não virá. O mundo será destruído com o argumento da renovação.

Edna, às vezes repito meu nome no escuro com medo de esquecer quem penso que sou. Não há mais nada que me cause o dano de um banho de chuva numa rua de bairro no interior, não há uma só lembrança que me resgate de um naufrágio.

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Written by celina

Escritora, nordestina, roteirista e fotógrafa. Editora da Fale Com Elas no Medium. Stories in Portuguese and English.

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