Imagem: Isabella Luiz

Como entreter naufrágios

Pai, Filho, Espírito Santo e Zélia.

celina
7 min readSep 28, 2021

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“Deus, ajude Zélia. Deus cura, Deus salva, Deus liberta. Deus cura, Deus salva, Deus liberta. Deus cura, Deus salva, Deus liberta. Deus cura, Deus salva, Deus liberta. Deus cura, Deus salva, Deus liberta”.

Repetíamos essa pequena oração quando era acometida pelos tremores. Meu corpo suava em cima da cama impecável do quarto de minha mãe, ela tinha um cuidado especial com os edredons, com os lençóis, mantinha tudo impecável, praticamente como se tivessem acabado de sair da loja. Ali era território proibido para as três filhas. Mas quando começava a correr pela casa gritando de pavor, ignorava tudo e deitava comigo, por vezes ainda suja pelo trabalho da cozinha, me abraçando, tentando conter meu pânico e choro. Ficava horas deitada, coberta com edredom mesmo com o calor infernal que fazia em Recife nos dias sufocantes de verão. Sentia um frio que parecia vir de dentro, o ventilador era desligado, as cortinas fechadas. O escuro do quarto, o cheiro levemente perfumado da roupa de cama, a voz de minha mãe cantando algum cântico da igreja, o cheiro de suor e farinha, as pernas que enrolava nas dela tentando roubar o calor daquele corpo que tinha me parido e que não conseguia entender o que tinha dado errado comigo me ninavam. “Deus cura, Deus salva, Deus liberta.” Repetia quando ela via que já tinha me acalmado mais, mas precisava voltar para mesa, para os fogões. “Zélia, repita até Jesus te ouvir”. Às vezes repetia aos gritos, às vezes sentia vergonha de que me escutassem e pensassem que era louca e rezava em silêncio no meu peito. Cresci crendo em várias coisas, menos em minha fé, ela nunca era o suficiente. Deus pai, Deus filho, Deus Espírito Santo, nenhum dos três me escutava. Eu gostava de rezar para a Santa Mãe de Deus, lembrava do Auto da Compadecida, da Maria da Fernanda Montenegro que salvava a pele do sem jeito do Chicó e do desembestado do Grilo. Ela me lembrava as mulheres de meu passado, minhas referências de maternidade, do interior, de minha avó paterna que tinha uma voz doce, cuidadosa, e que tinha a força de um ipê. Lembrava a minha própria mãe que vivia para se doar por todos os pecadores do mundo, se negligenciando no percurso. “Deus cura, Deus salva, Deus liberta.”.

“Deus, se você me escuta e não faz nada, eu entendo. O livre-arbítrio dos outros também não lhe pertence, nem o meu. Deus, por qual motivo não sinto que vivo a mesma vida que as outras? Por qual motivo viver é tão doloroso? Vejo as coisas envelhecerem, surge na cabeça a lembrança do fim do mundo anunciado pela TV na virada de 1999 para 2000, o fim da vida que conheço de olhos fechados até o mesmo tintilar das colheres nas xícaras de café baratas de Dona Margarida, sentada pela manhã na mesa gigante da primeira cozinha. Minhas irmãs brincam despreocupadamente, aos risos e gritos de alegria, pulando na cama de nosso quarto como se não soubessem que tudo isso vai acabar, que todos que conhecemos vão morrer, que vai chegar o dia em que nunca mais os veremos, que um dia Deus irá julgar vivos e mortos e depois disso o livro da vida acaba sem mais nem menos. Como podem viver sabendo que os condenados vão ser jogados no fogo eterno até se reduzirem a gritos de dor e cinzas? Como podem viver não sabendo o que será de todos os justos depois que Deus os presentear com a eternidade? Por qual motivo não posso ficar deitada no chão frio da sala assistindo as VHS de Castelo Rá-Tim-Bum para sempre com Joana e Martha? Por qual motivo a eternidade não pode ser permitida para esse momento de agora, em que todos estão jovens, que meus pais são fortes, que não há nada que os faça temer o tempo como eu agora? Deus, se isso não for possível, peço então que me tire metade dos anos de vida e presenteie meus pais, para que possamos viver o suficiente juntos, sem nenhum dia a mais ou a menos. Deus, tire minha vida antes do fim do mundo, para que nunca possa ver o fim das coisas”.

O bico de pato

A primeira crise de pânico que me recordo foi aos sete ou oito anos durante uma brincadeira de se esconder com minhas irmãs em casa. Meu esconderijo foi debaixo da cama do quarto das “meninas”. Parecia o lugar perfeito, óbvio o suficiente para enganar a pressa e o fato de que Martha gostava de procurar primeiro os lugares mais difíceis e perigosos, como se a adrenalina da brincadeira só fosse válida se colocasse a vida em risco ou ao menos o juízo de meus pais. Joana provavelmente tinha se escondido atrás de alguma das seis enormes cortinas da sala. Precisava apenas esperar ver os pés de minha irmã mais aventureira atravessar a porta de nosso quarto, para correr em disparada para cozinha e gritar a plenos pulmões “batida, salve-todos!” e depois gargalhar da cara dela para provocar um pouquinho. A primeira coisa que senti foi falta de ar, depois o corpo ficou gelado e o suor começou a colar minha camisa no piso de cerâmica. Uma pontada forte e dolorida dentro do peito pulsava a cada respiração custosa, pensei que estivesse para morrer, mas de quê? Eu era jovem, só quem morria eram os velhos, os fumantes e os homens que bebiam, caíam nas calçadas das ruas e por algum motivo paravam de se mexer. Daí lembrei do bico de pato.

O cabelo de minha mãe era escorrido e comprido, usava um bico de pato para prendê-lo. Dourado de metal com rosas da mesma cor em relevo, um objeto quase místico que fazia Margarida ficar ainda mais bela. Meus olhos chamuscavam com o brilho. Desejava aquela presilha, possuí-la, escondê-la. E foi numa tarde que cometi um de meus pequenos furtos dentro de casa. Pé ante pé, entrei no seu reino, o suor pingando nas costas, frio na espinha e coração a mil. Peguei o bico de pato, escondi nas calças e saí correndo me sentindo culpada no meio do caminho, mas não consegui parar. Não cheguei a usá-lo no cabelo, me bastava segurá-lo e saber que estava sob meu poder. Dormia com ele debaixo do travesseiro. Nessa altura dona Margarida já tinha dado sua falta e como conhecia bem as filhas, sabia ler no olhar suas emoções como quem olha no espelho as próprias. Veio direto a mim pedindo que desse conta. “Onde está, Zélia? Você pegou, não foi? Admita!” Mas o medo de fazer aqueles olhos me enxergarem de forma equivocada me fez negar, mesmo que o corpo me entregasse, mesmo que os olhos gritassem que era eu a criminosa. Certa manhã acordei e não o encontrei mais, procurei por todos os lugares, inclusive voltei ao quarto de Mainha, crendo que ela tivesse recuperado sua preciosidade. Mas passaram muitos dias e o cabelo de Margarida estava preso a outra presilha, preta, de plástico, uma coisa tosca e sem magia. Onde estaria o bico de pato? Pensei em mil e uma possibilidades, procurei em todos os espaços possíveis de nossa enorme casa, mas não encontrava nenhuma resposta. Até o dia da brincadeira de esconder, quando senti o peito latejar e rasgar por dentro, descobri seu paradeiro. Em sonho, por medo de perdê-lo e de ser descoberta, acabei engolindo, pois assim sempre estaria comigo e longe da visão de quem o procurava. Assim nunca descobririam meu delito.

Deitada no chão frio esqueci de atentar para minha estratégia de jogo, nada existia além de mim e do bico de pato que se abria perfurando o peito. Quão perto estaria de meu coração? Ele conseguiria perfurá-lo? Quanto tempo de vida eu ainda teria. Os minutos pareciam horas, a angústia e a culpa formavam um fino véu de vapor que me envolvia numa redoma, num pavor que não entendia, mas que estava ali transfigurado em um objeto de metal, o objeto de meu desejo e agora se transformando no fruto de meu pecado. Quis pedir ajuda, quis gritar por socorro, mas o que diria? Precisaria confessar o crime perante todos da família, ver todos aqueles olhares embaçados silenciosamente me julgando, cosendo minha sentença com o balançar de cabeça, com a expressão não de espanto, mas de uma decepção que era real até antes do bico de pato existir. E foi petrificada de medo como Martha me encontrou escondida. “Achei, você está morta!”, ela dizia em meio às gargalhadas de provocação por ter vencido a brincadeira.

Talvez aquilo fosse uma premonição do que viveria por muitos anos, talvez ela tivesse enxergado algo em meus olhos, talvez não fosse absolutamente nada, mas quis crer em cada palavra de tudo que me dissessem. Era isso ou revelar todos os meus segredos, todos os meus desejos mais íntimos, tudo o que gostaria de possuir. E não estava preparada para enfrentar a minha existência além dos olhos que mantinham aquelas paredes que me cercavam. Depois de alguns minutos a dor passou, o tremor. Saí devagar debaixo do colchão, pensei ainda uma outra vez em contar a verdade, mas já era tarde, não há pecado sem punição. Enganava a mãe, as irmãs, meu pai, meus tios, meus avós. Temer Deus era menos terrível que aquilo. Se fosse condenada, que fosse na privacidade do encontro com alguém cujos olhos não conseguissem me perfurar por medo de ser menos reta.

Olá, meu nome é Isabella, escrevo como Celina desde 2016. Vez ou outra dou as caras por aqui, me sinto cansada, mas ainda sento em frente aos cadernos e ao notebook pra recordar a escrita e a sensação de nunca estar sozinha quando digito em silêncio em algum cômodo da casa. São tempos estranhos e difíceis, mas enquanto escrevo esse pequeno bilhete, parece que me aproximo sutilmente de uma existência onde o peso das coisas nunca passa de ficção.

Gostou do texto? Compartilhe, me diz o que achou nos comentários ou pelo endereço “isabella-costa@outlook.com”. Essa série já está completa, mas resolvi jogar alguns pedacinhos aqui pra arejar a história. Espero que goste da leitura. Um abraço.

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Written by celina

Escritora, nordestina, roteirista e fotógrafa. Editora da Fale Com Elas no Medium. Stories in Portuguese and English.

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