Dezembro
Não há nada mais hostil que o riso de namorados à beira do Capibaribe ou em um dos píeres do Marco Zero à noite. Os sussurros dos amantes me incomoda como um zumbido de mosquito, uma vibração invisível no escuro. O som é interrompido pela voz Do homem e não tenho um centavo no bolso. Um, dois, três, transeuntes fantasmas do centro tiram também os amantes de seu transe, há sempre vozes que pedem e continuam pedir algo ao fim de um dia. Esse é o tempo do agora e, por acaso, o Massangana é o culpado por tudo. É no equívoco que encontro a desculpa para escrever. E é assim que sento ao redor da vida que ignoro nas paredes do Buriti. É no engano que a vida sopra em meu rosto a juventude que me resta e a certeza que a escrita me sustenta como o vento que consegue levantar uma pipa numa rua infestada de fios de energia.
Boa vista à Alfredo Lisboa. Caminhar pelo Recife antigo à noite me desperta para o passado, para hora dos amantes e para os braços de quem um dia amei. Há uma calçada, uma parada, um banco e um ladrilho no qual passei de mãos dadas. Estou cansada e a culpa é do Massangana e do letreiro que dizia que chegaria ao Tacaruna. Quando o ônibus dobrou à direita no Shell sabia que havia algo de errado, mas quis crer que era a falta de conhecimento das linhas que cruzam a cidade.
- motorista, esse ônibus volta para Agamenon?
-não.
-pude jurar que li no letreiro “Tacaruna”.
-mas está escrito, moça, porém está errado. aqui não passa pelo Tacaruna não.
Menos mal, pensei que estivesse louca ou que tivesse imaginado enxergar. Agradeci e desci antes que ele cruzasse a Aurora. Andei até o Antigo devagar, mas atenta. Lembrei, esqueci e sentei para assistir a vida que ainda posso ver, mas que não existe mais.
Se eu não fosse eu, quem seria? Se não existisse quem me amasse ou o que manter, quem seria? Se não fosse o Massangana certamente estaria em casa antes das oito da noite. Mas e agora, quem sou aos olhos dos amantes da hora agora?
Quero chorar mas não há lágrima, nem glândula lacrimal, nem nome em certidão que me justifique o que sinto. O horizonte é tão escuro, ao longe há a luz de apenas um cruzeiro. Penso na vida e no que habita esse corpo. É sempre o medo. Desejo fazer como a aniversariante desse dia. Me jogar na água e nadar até Brennand. Sobreviver e virar uma história preocupante para os pais. Mas sou tão covarde como quem odeio ou pareço odiar. Ainda sinto a ponta dos dedos e a gravidade. Ainda sinto a falsa sensação de que faço parte de algo. A escrita me segura com suas cordas grossas. Lembro de meus pais, de Celina, de meus avós e do tudo que sinto falta. Quero me rasgar em mil pedaços, depois remendar e virar pipa.
Quero queimar a cidade e os amantes com a ponta acesa de um cigarro. Quero nascer de novo surda para não ouvir nenhum dos sussurros da cidade. Nem a voz de Deus, nem dos anjos, nem dos que dizem me amar.
À noite vejo minha sombra contra a parede e me saúdo “tudo parece o fim do mundo”. O dia amanhece me fazendo esquecer da terra do nunca, da cama do meu primeiro quarto, da euforia do primeiro amor. Me sinto morta pela fadiga do dia. Não há nada que faça meu coração bater feito louco, não há nada que me faça sentir viver esse corpo. Mas o dia vem sobre mim assim como a noite e as semanas e os meses que correm silenciosos como uma mão no escuro que acaricia um corpo invisível. Ela desliza sob os lençóis e me sufoca com lembranças de outra mulher. Os gatos correm pela casa durante a madrugada, quebram o fio do sonho e levanto cambaleando feito equilibrista em um picadeiro assistido pelos fantasmas do meu passado. Desejo me jogar lá do alto, perco o ritmo, mas antes de cair o despertador toca. Mais um dia se levanta comigo, repito todas as coisas que me despedi no dia dos últimos, um jogo que não tem fim enquanto estou desperta. Acordo, deito, acordo, deito, abro e fecho portas, não me vejo em nada, não sinto nada, me fecho, abro uma porta e cumprimento alguém que também não me vê.
Às vezes me sinto tão só que me doem os ossos. Deito, levanto, esqueço de algo, me detesto, olho uma moça na rua e lembro de algo meu que foi meu.
Uma rachadura profunda se desenha no alto, sonho através delas. Uma sombra a atravessa, me abraça e beija. A mulher tola de meu sonho me assiste em silêncio, faço reverência, abro-me para sombra e ela engole de uma só vez, várias vezes, cada um dos átomos de meu corpo.
Olá, ainda estou aqui,
Celina.