Imagem: Isabella Luiz

Notívagos disfuncionais

Cartas para Edna

celina
5 min readNov 11, 2022

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Edna, estou exausta, não há listas de desejos nessa casa. Há uma energia confusa e estranha, pra baixo. Parece que o tempo aqui parou, por isso creio que essa tenha sido uma escolha um pouco consciente. Tim adquiriu o hábito noturno de tentar abrir uma das portas do armário embutido. Lá pelas três da manhã ele começa a arranhar com as unhas entre o espaço das portas até que elas se abrem num estalo baixo. Então fica dando voltas ao redor de si e mia para me acordar, para que eu observe também. Mas não há nada ali além de uma pilha de roupas mal dobradas, ao menos é isso que vejo. Certo dia coloquei uma cadeira tentando fazer um bloqueio, mas acordei assustada com o barulho dela caída no chão. Não sei como o gato conseguiu derrubá-la, me pareceu improvável, rezei uma ave-maria e um pai-nosso e me deitei para dormir novamente. Isso tem acontecido desde outubro, meu nível de tolerância está escancarado feito as portas que encontro abertas pela manhã. Às vezes elas rangem movidas pela brisa da janela ou do ventilador, me assusto um pouco, mas lembro de outras coisas mais assustadoras que sequer emitem som. Sou vencida por um cansaço que parece nascer nos ossos, não há regras claras nesse lugar, então pareço ter mais bravura esses dias.

Outra estranheza é que o calor que sentia nos pés ao dormir voltou. Às vezes é tão insuportável que preciso levantar duas ou três vezes para molhá-los. Arde como se existisse uma fogueira invisível crepitando no escuro. Esses episódios ocorrem esporadicamente desde criança. Nunca falei disso para ninguém a não ser para uma moça que trabalhou na casa dos meus pais e que me colocava para dormir. Um dia estava tão agoniada com o calor que ela colocou meus pés numa bacia de água e gelo e adormeci sentada na cama. Mais uma das presepadas de Isabella, ela dizia pra mim enquanto ia adentrando em sonho.

Descobri a meditação de Louise Hay em algum post de internet, joguei no google durante uma crise de ansiedade e insônia e consegui adormecer logo nos primeiros minutos. Desde então, sempre que me sinto ouriçada e fora de sintonia com as coisas, coloco uma de suas meditações sobre vencer medos e mudar o pensamento “impostor”. Deito, me enrolo, tensiono o corpo, relaxo e acredito nessa cura milagrosa tempo suficiente para embalar num cochilo ou num sono longo. Às vezes escuto no meio do dia no trabalho ou ainda em casa, me recuperando de alguma crise de ansiedade ou de depressão. Não sei se um dia finalmente funcionará, mas me acalma. Parece que alguém me segura a mão e me diz o que fazer. Há muitas coisas que aparecem na superfície da minha mente depois de uma meditação. Lembranças e sonhos boiam e esperam que eu as resgate. Então tenho escrito mais do que acreditei depois de todos esses anos levando o nome de “escritora” em algum perfil de internet.

Hoje lembrei de um livro que ganhei e que se encantou na casa de meus pais, “A princesa e o rouxinol”. Tentei encontrá-lo em sites de buscas, mas não há nenhum resultado. Lembro da capa, uma menina com olhos puxados, branca feito porcelana ao lado de um pequeno e lindo rouxinol de asas laranjas e vermelhas. O fato de não achar me deixou um pouco aflita, agitada. E se a memória não for real? E se foi apenas um sonho de um sonho? Lembro vividamente de estar sentada na minha mesinha de plástico, de receber o livro e dar um abraço em meu pai. Essa imagem tem mais de vinte anos. Talvez esteja perdendo mais do que imagino.

Deito, me enrolo, tensiono o corpo, relaxo e acredito nessa cura milagrosa, em reprogramar o cérebro e os pensamentos. E deixo a lembrança ser levada pela correnteza do tempo, talvez retorne para o lugar de onde veio ou se perca para sempre, se dissolva no líquido amniótico de um útero onde uma criança ainda não nasceu.

sonhei com um afogamento. caminhando para areia via alguém gritando de joelhos, a reconheci, e quando avistei o corpo que boiava ao mar chorei e gritei junto com a figura ao meu lado. tremíamos e erámos atingidos pelo vento que parecia enfiar milhares de agulhas na pele. não contei o sonho para nenhuma das pessoas envolvidas, mas fiquei tentada a perguntar se alguém planejaria uma viagem à praia por desencargo de consciência. guardei em silêncio, dessa vez fora do caderno em que anoto os sonhos, mas nessa conversa de agora com quem não vejo o rosto. sonhos longos e em que converso com muitas pessoas me deixam nervosa, acordo perdida, sem saber onde estou. dura uns poucos segundos. o corpo ainda guarda a sensação de morte. levanto e me jogo embaixo do chuveiro, desejo escorrer junto com a água e ir para outro lugar onde não saibam meu nome, onde possa existir da forma como gostaria. um lugar onde os despertadores não funcionam e onde posso me entregar às ruas de meu conto infinito e não acordar nunca mais.

Edna, queria ter um amigo de infância, alguém que conseguisse me enxergar melhor que eu. Pensei isso essa madrugada quando tomei um zolpidem para dormir. Quero transformar algo em irreversível. Quero escutar da boca de alguém que sou má e uma péssima pessoa. É isso que secretamente espero, ser desmascarada por algo que não sei, mas que é minha culpa. Quero que alguém diga algo porque esse silêncio tem me matado, viver sempre foi incompreensível pra mim, não consigo caber em lugar algum. Não me sinto bem nesse espaço, é como se eu fosse um caco de vidro preso em meu pé e meu corpo tentasse me expulsar de mim. Quero que o mundo acabe logo para não ter que jogar esse jogo, não há nada que faça sentido nessas regras. Não há nada que me faça querer acordar pela manhã e levantar de forma sadia, não há um único sonho que queira sonhar, não há listas de desejos escritas por mim. Só o que há é sono, cansaço, autodestruição e ânsia que as coisas acabem de vez.

o que há de errado comigo?

Olá, queria ter algo para dizer, mas não tenho conseguido ser a pessoa que sou e que escreve aqui. Um abraço. Celina.

Texto anterior:

A mulher de vapor. Cartas para Edna | by Celina | Sep, 2022 | Medium

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Written by celina

Escritora, nordestina, roteirista e fotógrafa. Editora da Fale Com Elas no Medium. Stories in Portuguese and English.

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