Reinações de TDAH
Vinha adiando essa escrita por falta de motivação contínua. Ela surgiu inúmeras vezes como ideia fugaz, pequenos fogos que estouram e brilham na mente acendendo toda boa vontade de meu reino, mas por pouco tempo. Outros shows pirotécnicos de mesma intensidade invadiriam meu céu, um atrás do outro. E a lembrança de meu festejo era esquecida, ao menos até outra vez o desconhecido atentar para aquela caixinha na masmorra de meu castelo e reascender novamente intenção.
Sentei no sofá da sala dois minutos antes do expediente encerrar, os rojões começavam a estourar. Aproveitei a empolgação antes virasse apenas fumaça. Não sei ao certo por onde começar ou o que dizer nesse primeiro momento. Talvez falar sobre as coisas do início fizesse mais sentido e fosse mais racional, mas vou deixar a racionalidade para mais na frente, se conseguir fazer disso um hábito.
Faz duas semanas que estou sem venvanse, mais de um mês sem a medicação para o TAG. Não por vontade própria, mas por necessidade financeira. As coisas se apertaram e o tratamento que já era um luxo e que me permitia aos trancos e barrancos, virou um desejo inacessível, uma vontade silenciosa ecoando no saldo de uma conta bancária. Não é a primeira vez que acontece. Há dois meses estive na mesma situação. A abstinência me exauriu, me transformou numa massa confusa, sonolenta, imóvel e depressiva. Quase perdi o emprego, quase perdi tudo o que conquistei de progresso até pouco tempo, inclusive a vontade de existir. Mas os dados da vida foram jogados novamente no mês seguinte e o número que saiu foi o suficiente para retornar ao menos com a medicação para o TDAH. Vou ser precisa, R$1.100,00, esse é o valor para sustentar o tratamento psicológico, psiquiátrico e medicamentoso. Com esse dinheiro muitas famílias se sustentam, com esse dinheiro vinha manejando os benefícios dos resultados de estar sendo bem avaliada e medicada.
Meu carrinho estava aos trancos e barrancos nos trilhos. A memória, a agitação, a dificuldade de me expressar, em manejar as relações sociais, trabalho, tudo parecia milagrosamente menos custoso, menos dolorido. Continuei até que as minhas reservas começaram a minguar e tive que escolher entre pagar aluguel, feira e o escambau básico-básico ou poder ter uma existência mais saudável mentalmente. E eis-me, mais uma vez em cima de uma ladeira íngreme e infinita na minha velha bicicleta sem freio. Segurando com todas as forças o guidão, pedindo a Deus pra não topar em algo e sair voando pelos ares, me arrebentando na descida. Hoje não há nada que possa fazer, é isso e ponto, é isso e priu. Então posso dizer a você (com um pouco de drama consentido pela produção) que agora não tenho TDAH. TDAH é diagnóstico de gente que tem condição. O que tenho agora é preguiça, desinteresse, falta de vontade e motivação, frescura.
“Ah, mas todo mundo tem um quê de esquecimento, desatenção, hiperatividade”. Ok, mas a intensidade de tudo isso na mente avoada que me rege é sufocante. Manejo básico de tempo pra mim é me assistir tentando cortar uma avenida, olhando os carros passarem até o momento perfeito para atravessar. Um, dois, três, cinco, vinte e sete, quarenta e nove. Um fusca azul passa bem devagar e lembro de um dos primeiros carros de meu pai, de uma viagem pro interior da paraíba em família e que numa dessas usava um terrível aparelho móvel que me deu enxaqueca por quase sete horas de trajeto. Uma moto passa em alta velocidade rasgando o vento, ensurdecendo a memória e percebo que continuo naquele pedaço de calçada tentando chegar ao outro lado. O fluxo de carros é o mesmo, mas já se passou mais de uma hora e não senti. O peso do mundo descansa no meu coração e decido voltar pra casa e deitar na cama até não aguentar mais. Critério, prioridade, concentração, manejo social, impetuosidade, imprudência, impulso, são coisas que agora podem significar algo em meu consciente, mas daqui há quinze minutos se alguma coisa me faz estranhar o habitat, quem sabe o que será? Essa desregulação é comum na minha existência, mas a partir do momento que preciso estar em contato com o mundo sei que o que virá não está nem aí para o fato de que não tenho neurotransmissores suficientes para equilibrar a balança social.
À tarde conversava com a minha psicóloga sobre a condição forçada de abandonar o tratamento e tentei ser o mais otimista possível para não piorar a situação em minha aldeia. Para não enervar meu povo e gerar o gatilho da ansiedade. Preciso do tratamento todos os dias, ficar sem medicação não é a melhor alternativa, mas foi a que me foi permitida nesse instante. Continuo com meus cadernos de anotações e com a minha determinação random para com meus hábitos de saúde, alimentação, sono. É uma roleta-russa acertando algo ou somente estalando na confusão de pensamentos incessantes na velocidade da luz. Os carros continuam passando, zunindo, alguns velozes outros um pouco mais devagar. Permaneço tentando atravessar para aquele lugar onde todos caminham, onde tudo parece menos absurdo, menos caótico.
Quis colocar tudo nesse bloco de notas antes que a pólvora queimasse e esquecesse de que sei o que está acontecendo, mas até isso me foge quando estou no alvoroço de algum estado. Estou aqui, nessas palavras cansadas, despertas e esperançosas.
Olá, meu nome é Isabella. Tenho TDAH desde criança, mas só fui diagnosticada no início desse ano. Quis trazer pra cá um pouco da saga que tenho vivido desde então. Partilhar essa jornada é uma forma de cura para um estado incurável. Esse relato é totalmente pessoal e minha intenção está longe de incentivar qualquer tipo de abandono de medicação e tratamento, muito pelo contrário. Espero que se isso chegou até você, que possa ajudar independente de qual lado da calçada você está. Um abraço.